sexta-feira, 17 de abril de 2009

Reflexões
Aquele que melhor sabia nos incomodar
Com dor e amor, ao amigo Reinaldo Maia

Cada um dos parceiros de cena, dos que batalham pelo teatro, em São Paulo e no Brasil, sabem quem foi Reinaldo Maia. Não vou perder tempo fazendo descrições emocionadas, no risco da pieguice, pois o homem que morreu merece palavras melhores. Também não vou rasgar o peito de tanto batê-lo reafirmando a luta comum, porque esse legado ele já deixou. Muito menos, vou dizer coisas pretensamente bonitas que deveria ter dito quando ele estava vivo, até porque nunca perdemos a oportunidade de dizer o que pensávamos e sentíamos, um ao outro, dos parlapas aos folias. Enfim, no caso do Maia até a morte e a perda são dialéticas.

A memória, essa traidora incontestável, me remete a algum encontro no qual ele fez a descrição mais bela de um quadro de Goya que ouvi na vida. Parece fora de contexto. Mas agora eu sei, Maia era a sua própria descrição da luz lutando para vencer a escuridão. Era assim que ele fazia. Iniciava-se uma reunião, ensaio, debate, encontro político – fosse o que fosse –, ele observava calado, com os olhos centrados e ira santa, entre uma baforada, das ventas ou do cigarro. Numa certa altura, ele pedia a palavra. Sempre iniciando lembrando a sua condição de filho de Ibitinga, que, no fundo, queria nos colocar, a todos, no contexto mais simples, de artistas caminhando juntos, cegos ou esfomeados, em direção a sonhos e abismos.

Só que ele não deixava que tudo ficasse nesse plano pueril, muito menos nos remetia a um pé-no-chão óbvio. Maia abria a boca e encadeava palavras em forma de uma escada que nos levava ao alto tanto quanto nos punha apavorados, morrendo de medo. Ao ouvi-lo, sempre eu começava a me perguntar se não estava me acomodando. Em geral, estava. Acho que a maioria das pessoas que o ouviam se incomodavam. Era isso que era o mais brilhante. Maia nos ajudava a sair do comodismo prosaico de nossas vidinhas pequenas, voltadas apenas ao sobreviver. Com ele pensávamos grande e ousadamente, sem bravatas, e ele nos dava, generoso, o seu senso crítico mordaz e pertinente. Invariavelmente, nos tirava gargalhadas, usando o humor como confronto da vida. As palavras do Maia sempre nos melhoraram. Bradando bárbaro era o gentil civilizado que nos ensinava a não sermos apenas os animais querendo o pasto. Nos remetia ao sonho das utopias. Ao não-lugar onde o mundo não será perfeito, mas harmônico.

Perdemos aquele que sabia nos incomodar. E como! Perdemos o camarada Maia, que sabia traduzir o comunismo sem se sentir anacrônico. Que tinha brio em cada uma das suas colocações e sabia que sua defesa – sim, porque eram defesas! – tinha o tom da paixão encoberta de enorme gentileza. Defendia a si, ao teatro e aos oprimidos sem o peso da compaixão católica. Era um materialista firme e coerente.

Queria apenas um mundo mais justo e civilizado. Queria respeito. Queria conversar com os amigos. Queria dividir uma bela feijoada tanto quanto uma conversa honesta. Queria o teatro livre de amarras, liberto e libertador. Queria transformar o mundo. Queria provocar aos amigos. E dava-se tanto, a ponto de provocar os inimigos, o que significava a enorme generosidade de tentar transformar até os seus opositores.

E, posso dizer, tranquilo e com o coração apertado pela sua partida, que ele conseguiu muito de tudo isso. Seu querer mostrava o poder que ainda temos. Seu legado é maior do que podemos supor. O que ainda é pouco para que o mundo seja melhor, mas já é muito para o que mundo merece.

Hugo Possolo

4 comentários:

Alan Livan disse...

O mundo parou um segundo... Ou dois... Belíssima homenagem!

gustavo.assano disse...

muito bonita a carta. sinto esse como o maior dos impasses. sem a implacabilidade e dureza dele, não encaro com segurança os tempos que virão. mais um que se vai e simplesmente não podíamos perder.

Mário Viana disse...

Porra, Possolo... Eu estava pensando no que ia escrever sobre o Maia no meu blog... Não preciso... Você escreveu tudo, com o mesmo sentimento de surpresa perplexa... O Maia vai continuar sobrevivendo a cada vez que um grupo de teatro - consciente do poder e da responsabilidade que carrega - subir em qualquer palco deste país. Beijo. M.V.

Hugo Possolo disse...

Pois é, Marião!... Gustavo! Alan!... É dura a perda de um parceiro, amigo e lutador como o Maia. Agredeço a todos que, além dos comentários, enviaram e-mails pra cá e pro Folias. Bjs Hugo