quinta-feira, 9 de abril de 2009

Reflexões
Fomos contemplados pela última edição do Fomento com o projeto O Teatro e o Poder. Além da alegria e satisfação em dar continuidade a um trabalho que tem obtido ótimos resultados, nos demos conta de que, muitas vezes, os projetos contribuem também para organizar parte do pensamento de um grupo. Um projeto não se faz apenas em torno de seus objetivos práticos e planos de trabalho. O que está por trás deles é sua proposta artística, sua relação com a sociedade, sua visão política. Por isso, decidimos publicar no Parlapablog, parte da justificativa de nosso projeto, com pequenos ajustes de texto, para tornar público a base na qual formulamos nossos projetos.


A estética do humor


“(...) o novo, o original, o pleno de conteúdo conquista sua vitória sobre as velhas experiências do receptor. É nisto que se manifesta efetivamente a ampliação e o aprofundamento das experiências pelo mundo conformado da obra.” (Georg Lukács)


A palavra estética foi reduzida a pó. Dela, por vezes, só se compreende o que representa a forma, o externo e aparente, como se fosse oca. Recuperar-lhe o sentido amplo, dialético, que tanto esclarece a função social da arte, é o trabalho permanente de artistas e intelectuais que não cedem ao achatamento de idéias que o mundo globalizado vem sofrendo.

Dentre os diversos fenômenos estéticos, no teatro e no circo, escolhemos o humor, a linguagem direta e popular, participativa, para nos colocarmos como emissores de uma mensagem que não se fecha em torno de si mesma. Queremos gerar reflexões, abrir questões, fazer provocações de maneira alegre e sedutora para aproximar o público de suas próprias contradições: a difícil tarefa de encontrar esperanças no ser humano de nosso tempo.

Em grego, estética produz a expressão que pode ser traduzida por “perceber-se”. Para retomar esse sentido original, sempre colocamos o humor e sua imensa capacidade destruidora em confronto a um mundo mesquinho, individualista e consumista. Não acreditamos num embate chato e rançoso, pesado e pouco sedutor. Queremos oferecer diversão por meio do convívio e da festa, dos significados de encontro público, de diálogo, que somente as artes cênicas podem propiciar de modo pleno. Perceber-se de modo permanente destacando a alegria de viver.

Após dezoito anos de atividades dos Parlapatões, fica cada vez mais visível em nosso trabalho, quais os temas e as questões que caracterizam a maior parte de nossas encenações. E, se o humor é nossa forma mais constante de manifestação, o conteúdo de nossos espetáculos traz diversas abordagens sobre o ser humano em busca da liberdade, algo sempre entrelaçado às questões do poder. É uma constante na dramaturgia própria (ou da qual nos apropriamos) que, de uma maneira geral, reflete uma inquietação sobre todas as dimensões sociais do homem.

Nossas montagens mais recentes se afunilaram ainda mais nesta direção. Após a montagem de As Nuvens e/ou Um Deus Chamado Dinheiro, adaptação das obras de Aristófanes, o grupo sentiu a força que o Teatro tem quando revela as contradições do poder. O espetáculo estreou no início de 2003 e já trazia o milenar debate sobre os juros, o poder dos agiotas institucionalizados – os bancos – e sua influência nas decisões de Estado. Ainda no primeiro ano do governo Lula, antes da crise do mensalão, o espetáculo debochava e criticava o jogo de cartas marcadas da corrupção oficial. Em Prego na Testa, texto de Eric Bogosian, o humor corrosivo, de forte carga lírica, denotava o enfoque político latente na obra do grupo através de personagens urbanos tão cômicos quanto assustadores. A platéia ri e se angustia com aquilo que a faz rir.

Hoje, nossos espetáculos transpiram o debate da função social e política do teatro como aconteceu em Hércules, texto de Hugo Possolo, numa grande montagem de rua, feita em parceria com a Pia Fraus, que trazia à cena a inadequação do sentido humanista mais puro ao cruel mundo globalizado e consumista. O Pior de São Paulo, um provocativo passeio turístico, colocava o público diante das mazelas e injustiças da cidade que, com muito humor e festa, fazia refletir sobre o significado de cidadania. Vaca de Nariz Sutil, baseado na obra de Campos de Carvalho, primeiro drama encenado pelo grupo, trouxe os limites entre loucura e da liberdade, revelando a hipocrisia de uma sociedade provinciana na maneira de condenar a paixão de um esquizofrênico.

A própria força do Teatro em si, tanto na experiência de espetáculos de rua do grupo quanto da percepção de quanto os teatros transformaram a Praça Roosevelt, revela a importância do poder enquanto tema. A capacidade agregadora do teatro não pode ser tratada de maneira superficial, como um modismo passageiro. A carga de trabalho aplicada é enorme e resulta em uma transformação urbana, capitaneada pela arte, especificamente pelo Teatro, raramente vista no mundo. Além do trabalho de cada grupo, o dinheiro público, por meio do Fomento, prêmios e leis de incentivo resulta numa rara conquista do Teatro, que humaniza a aridez de uma metrópole que nem sempre o reconhece.

Nós, Parlapatões, sabemos que esses conceitos abstratos podem ser lidos como meros clichês demagógicos. Porém, constatamos que há uma modificação que se dá não apenas na vida urbana a nosso redor, mas na compreensão de nossa missão enquanto artistas. Vemos que nossa obra tem se direcionado, por meio das mais variadas linguagens, a um estilo próprio que não se limita a sua forma e tem potencial para ir além.

Nossa atuação não se restringe aos espetáculos, traduzindo-se também, ao longo de nossa trajetória, em atuações políticas, realização de mostras e festivais, ciclos de debates e dramaturgia. Isso ganha outra dimensão quando apontamos que esse é o eixo de nossa busca artística. É para tirar a estética do chão, fazer dela mais que uma conversa sobre a diversidade das linguagens do teatro contemporâneo, ou sobre as visões deste ou daquele encenador, ou, o que é pior, se submeter a compreender e adotar o gosto da crítica, dos jurados de premiações. Isso é menor em relação à função social do teatro. Queremos a estética em nossa a vida cotidiana. E sacudir a poeira para, a cada vez, não se esquecer de retomar a capacidade transformadora da arte.
Assim, queremos nos aprofundar ainda mais na questão do poder enquanto tema. Tanto do poder do Teatro em si, sua força, contradições e fragilidades, quanto de suas relações com as mais variadas formas de manifestação do poder. Abordar o poder instituído, a política convencional, suas várias instâncias; o poder dos meios de comunicação, da opinião pública e do comportamento da sociedade contemporânea; o poder das religiões, da manipulação da fé alheia e do conflito entre a globalização e as tradições culturais.

Enfim, o poder é um tema tão vasto que somente uma proposição estética consciente poderá gerar as reflexões necessárias, dentro de nossas vontades e limitações. E sabemos muito bem qual é o nosso papel de palhaços num mundo insosso. Por isso, nos colocamos diante da possibilidade de criar espetáculos e atividades culturais cujo valor simbólico tenha capacidade transformadora. É um tema ousado, dos que gostam do risco e do perigo, como nós, de alma circense. Pode parecer pretensão, querer o poder do teatro do mundo, um teatro que chegue mais próximo da reflexão sobre o sentido da existência humana. Esse é nosso desafio estético.


Hugo Possolo

3 comentários:

Albérico disse...

Querido , sabia desde as primeiras linhas que este texto havia sido redigido por vc !
Pareceu-me um projeto para uma dissertação de mestrado sobre o HUMOR !!!!
Este BLOG é mesmo muito refinado , MUIIIIIIIIITO BOM !
Abraços .

Sílvia Lhullier disse...

Parabens!!! Sempre fico feliz quando grupos como o de vocês são selecionados pelo fomento! Fico feliz porque logo em seguida somos presenteados com ótimos espetáculos e muitas gargalhadas.

M. S. Silva disse...

Obrigado!!